Desta vez, um nome incontornável da ortodontia nacional teve a gentileza de nos dedicar algum tempo a responder a esta entrevista: o Professor Doutor Afonso Pinhão Ferreira. Académico, ortodontista, político, empresário, homem de várias artes e também um homem de família.
Bom dia, Professor, esquecemo-nos de alguma vertente?
De facto, assumo ser multifacetado, não fora ser assim rotulado pelos demais. Acrescentaria que sou, acima de tudo, um homem pleno de felicidade, já que a arte me autoriza o exercício experimental da liberdade.
O Professor é originário da Póvoa da Varzim e lá se estabeleceu. Olhando para o percurso da sua vida, foi o destino que o manteve ou foi uma escolha racional? Ver-se-ia a viver noutro sítio?
Somos nós que habitamos o mundo e não o mundo que nos habita, pelo que me vejo a criar vivências e ocorrências em qualquer local de um qualquer mundo. Admito que no período embrionário da minha profissão, poderia ter eleito outra comunidade para clinicar, o que fundamenta ter sido uma escolha racional. Foi-o indubitavelmente.
A ortodontia foi uma escolha clara e evidente para si?
Vi na ortodontia o poder exercer uma profissão com arte. Um ofício saboroso que me parecia exalar um aroma atrativo. Com efeito, na nossa especialidade, o resultado do tratamento pode ser observado, contemplado e sentido pelos outros. Daí advém a mesma satisfação que sinto quando termino uma escultura, uma pintura, um livro, …. A ortodontia reúne na sua biblioteca, livros de estética, tratados sobre harmonia, cadernos de simetria, manuais de normalidade funcional, publicações de biomecânica, enfim, reúne os componentes da racionalidade humana: a arte e a ciência.
Da miríade de ortodontistas com quem conviveu e se cruzou, quais gostaria de prestar homenagem pela visão que lhe deram da ortodontia.
– O Sr. Dr. Robert Murray Ricketts por ter criado um método estratégico para o tratamento ortodôntico, um percurso sequencial com princípio, meio e fim, que a ser cumprido pelo especialista implicava colar aos tratamentos o adjetivo sucesso;
– Os Drs. Michel Langlade e Maurice Picaud que além de terem publicado livros completos com essa filosofia de tratamento, me permitiram ver a estratégia Bioprogressiva in loco, na sua clínica em Clermont-Ferrand na França.
– O Sr. Prof. Doutor J. Bação Leal, por ter lançado as sementes do que viria a ser a Sociedade Portuguesa de Ortopedia Dento-Facial. Na altura o seu prestígio cativou os colegas da Sociedade Francesa de Ortopedia Dento-Facial a auxiliarem-nos na empreitada da fundação. A SPODF promoveu inúmeros cursos, reuniões científicas, fóruns, revistas, encontros que muito ajudaram a especialidade de ortodontia em Portugal. Já fez 34 anos que exerço exclusivamente o mister de ortodontista, o que me permitiu participar e ver o seu desenvolvimento, e não o consigo ver sem o incalculável contributo da SPODF. Digo com orgulho que sou sócio fundador, titular, especialista e fui Presidente da Direção entre 2001 e 2007.
– O Sr. Prof. Doutor Carlos Silva, porque a amizade que nos atribuímos ao longo dos anos foi também uma anfetamina ortodôntica.
– Seria uma grande injustiça não citar colegas que adubaram o meu percurso profissional e que me merecem sentida deferência:
– Todos os Professores do Serviço de Ortodontia da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto, onde exerci a minha docência universitária e onde nasceu o ensino pós-graduado da especialidade;
– Todos os membros dos Órgãos Sociais da SPODF que com o seu contributo, tando auxiliaram a especialidade;
– Os meus estudantes dos cursos de pós-graduação, que me obrigaram diariamente a beber o sumo da atualização;
– Os Professores convidados a proferirem cursos na SPODF.
As principais queixas dos pacientes que procuram tratamento ortodôntico são diferentes atualmente?
Tenho para mim que são as mesmas. As exigências é que aumentaram. Alinhar e nivelar as arcadas dentárias numa oclusão funcional sem problemas periodontais já não é suficiente. Os dentes têm que ser morfologicamente bonitos e vistosos, brancos, com dimensões harmonizadas com o todo facial, enfim, o muito bom já não qualifica a excelência, apenas e, tão só, o ótimo.
Os pacientes já nos procuram para fazer tratamentos ortodônticos especificamente com alinhadores transparentes. Não acha que isso altera o nosso papel com profissionais de saúde?
Francamente, acho. Por honroso convite da Revista Maxillaris escrevi um artigo de opinião na rubrica Ponto de Vista, sob o título (julho/agosto2022/nº 124) “A Ortodontia, da especialidade à trivialidade”. Nele, faço uma resenha da evolução da especialidade, que malogradamente caminha para a desvalorização socioprofissional. Recomendo vivamente a sua leitura a todos os que amam a profissão.
De qualquer forma, uma das mensagens que lá transpiro é: “Quero que fique bem claro que a elastodontia (alinhadores) tem lugar no meu arsenal terapêutico, mas como mais um meio auxiliar de ortodontia e não como uma nova filosofia de tratamento”.
Tem um filho que já trabalha consigo e que se dedica à reabilitação oral. É otimista quanto ao panorama futuro da medicina dentária e em particular da ortodontia para um(a) jovem profissional em Portugal?
Tem sido um privilégio e um prazer imenso contar com o meu filho António na evolução da equipa pluridisciplinar que constitui a nossa Clínica ORTOPÓVOA. É um facto há mais de 14 anos. Francamente, sou um sortudo em poder partilhar o trabalho com a família.
É minha convicção que os jovens médicos dentistas têm o seu futuro deveras comprometido. Faz alguns anos que escrevi um artigo de opinião sobre este assunto na Revista Saúde Oral em 2015, quando deixei de ser o Diretor da FMDUP, sob o título “Estamos a formar infelizes”. O seu conteúdo é de uma atualidade desconcertante.
Vivemos num engano absurdo, perpetuado pelos nossos governantes e dirigentes da classe, que entendem que o mercado livre não necessita de regulação. Os atuais pensadores recomendam-no a todos os níveis. Tem que haver sempre uma relação entre a oferta e a procura. Há faculdades a mais. O país passou a ser exportador de dentistas para garantir que as demasiadas instituições de ensino superior relativas ao ensino médico dentário se sustentem.
Além disso, o ensino tem-se desqualificado de forma inaceitável. Hoje, os estudantes têm dificuldade em praticar atos clínicos durante a aprendizagem, devido à falta de pacientes, excesso de alunos e ratio incorreto docente/discente. No meu tempo de estudante, não faltavam pacientes para praticarmos uma clínica tutelada. Dado sermos poucos, tínhamos apoio docente permanente. Esse, sim, mostrava-se como um ensino vocacionado para o desenvolvimento de competências. A licenciatura categorizava e habilitava o médico dentista a estabelecer-se a e exercer a profissão sem dificuldades. Hoje, isso não sucede.
Para tratar um paciente numa instituição do ensino superior, hoje constituem-se binómios, trinómios, … grupos de estudantes. Há médicos dentistas que se formam praticamente sem nunca terem dado uma anestesia ou extraído um dente. Sendo do conhecimento geral, esta situação degradante mantem-se, porque o qualificável não é rentável. As necessárias decisões políticas são proteladas perante o poder do mercado financeiro.
Sabemos que além de ser um artista versátil, também gosta de filosofia. Publicou recentemente o livro Lusitano Afonso pela editora Blue Book, manifesto de filosofia política em prosa rimada, que desde já aconselhamos os nossos colegas a ler. O que o motivou a escrever esse manifesto?
O termo “manifesto” assenta como uma luva. Aconteceu que senti necessidade de provar a mim mesmo que um professor universitário, para além da sua função pedagógica e investigacional, tem responsabilidades educacionais perante a sociedade. É inerente a um universitário saber procurar o conhecimento e utilizá-lo em benefício de terceiros. Sempre gostei de ler e, mais recentemente, de ler filosofia, o que me ajudou a estruturar a minha forma de pensar, a entender melhor o que me rodeia e também a ensaiar uma proposta filosófica que contemplasse uma nova Constituição Mundial em treze preceitos descritos no 4º capítulo do Lusitano Afonso. Tenho consciência que não se trata de uma leitura fácil, pois não se trata de um romance, mas sim de um ensaio de filosofia política. Um livro que obriga a pensar, um desafio que também recomendo.
O Lusitano Afonso tem uma sequência lógica em quatro capítulos que passo a expor, para que possa despertar interesse nos colegas a sua leitura:
1 – “A desilusão como primeira impressão”, onde a frase inaugural indica o sentido do escrito, “Há um sequente existir sem viver, com um permanente afligir para ter. E, ter significa, quase sempre, ficar a dever, o que implica trocar a autossuficiência pela dependência. Constrói-se a sensação de liberdade com a ilusão de propriedade. O homem quer ser senhor, mas fica devedor. Ora, este sacrifício individual é um malefício de alcance social.”
2 – “A desorientação como explicação “, que versa sobre a sociedade que habitamos, “A sociedade europeia está cada vez menos aberta, sentindo-se cada vez mais uma teia que aperta. Está a descorar a sua memória e a complicar a sua trajetória. Aceitou países ainda com o processo democrático a meio, por consolidar; uma espécie de abcesso autocrático consolidado no seu seio, a infetar.”
3 – “A imaginação contra a deceção”, um capítulo que propõe uma revolução no sistema de ensino, ““Vamos criar um novo universo, um mundo menos perverso, onde o Homem não se justifique apenas pelo trabalho, e encontre na cultura e na arte, viagem e agasalho.”
4 – “A reflexão em jeito de proclamação”, onde abordo uma nova trajetória para a comunidade humana.
Considera que a sociedade ocidental, e em particular a portuguesa, está a esquecer alguns dos seus valores?
O problema não é estar a esquecer. É ter cada vez menos e, sobretudo, não segurar os poucos que ainda tem. Eu explico.
Que desafios vê para as gerações futuras?
Mudar de uma educação fundamentalmente laboral para uma formação racional e artística que auxilie a dar sentido à vida. Promover um ensino que evite no horário educativo o uso dos ecrãs e fomente a leitura como exercício introspetivo. Que jovem hoje se pergunta sobre quais os princípios e valores em que acredita e pelos quais deve nortear a sua existência e objetivar a sua defesa?
Prefere férias na praia, na cidade ou de aventura?
Prefiro passá-las na paz do espírito.
Qual a sua cidade preferida?
Porto, Porto, Porto. As razões são todas.
O livro que mais o marcou?
Seria uma lista extensa. Mas, seguramente, os três livros que mais me ensinaram e que recomendo vivamente, foram:
– “Siddhartha” de Herman Hesse, que nos abre o espírito e ensina como somos uma parte do Todo;
– “O Filósofo e o Lobo” de Mark Rowlands, que fundamenta a dissimulação como uma característica primata;
– “Homo Deus” de Yuval Noah Harari, que nos dá um retrato pouco simpático de como se tem processado a nossa evolução.
E dois livros de filosofia que aconselharia ler?
– “O milagre Espinosa” de Frédérique Lenoir, um best Seller que nos mostra que sempre existiram homens tremendamente inteligentes, capazes de pensar fora da caixa e ainda que vale a pena combater a crendice;
– “A sociedade do cansaço” de Bjung-Chul Han, que nos explica o que se passa atualmente na comunidade humana.
O que o tira do sério?
Por ordem decrescente: tortura, tirania, guerra, escravidão, venda de órgãos humanos, pedofilia, moralismo, ignorância e qualquer religião.
Qual a sua comida favorita?
Babo-me com um pêssego maduro fresquinho, tragado à sombra de uma árvore num dia de verão luminoso.
Um filme que não se cansa de rever?
Não posso dizer, não tem história, mas é muito excitante…
Onde viu o pôr do Sol mais bonito?
Julgo mesmo que ainda o vou ver, quando os meus átomos se reorganizarem num mundo paralelo.
Qual o sítio do mundo onde gostaria de estar agora a responder a esta entrevista?
Em minha casa, no meu escritório, ou seja, onde estou.
Obrigado Prof. Doutor Afonso Pinhão Ferreira